
Você concorda comigo que a maioria de nós não gosta de sentir dor? Ninguém gosta de sofrer, seja por amor, seja na cadeira do dentista, seja fazendo algo que não gosta.
Com exceção de algumas pessoas que sentem prazer na dor, em geral o ser humano faz de tudo para evitar a dor e o sofrimento, porém, ela é tão necessária quanto o prazer. Sem ela, perdemos a capacidade de perceber o que há de errado em nosso corpo, em nossa vida.
Sem dor, perdemos a capacidade de sentir prazer.
Pretendo, com a leitura desse artigo, te oferecer uma nova perspectiva sobre a dor e fazer com que você tenha uma relação um pouco mais amigável com ela. Vamos?
Por que sentimos dor?
Em praticamente todo o corpo, temos terminações nervosas chamadas nociceptores (do latim nocere, ‘ferir’). Os nociceptores são responsáveis por perceber estímulos com potencial para lesionar os tecidos do corpo e transmitir esses estímulos para o cérebro. No cérebro ocorre a percepção consciente da dor e o envio de sinais químicos e elétricos para outras regiões, para que o problema seja resolvido e o corpo preservado.
Sendo assim, quando você encosta a mão em uma panela quente, os canais iônicos dos nociceptores se abrem, gerando um potencial de ação e levando essa informação para áreas específicas do cérebro. Seu cérebro então promove uma cascata de eventos para que, de maneira reflexa, você imediatamente tire a mão da panela. Se não fosse pela dor, sua mão continuaria lá.
Existem raros casos de pessoas com uma condição chamada insensibilidade congênita à dor. Essas pessoas passam a vida inteira em constante risco de autodestruição e geralmente morrem muito cedo. Perdem a consciência sobre o que é danoso ao próprio corpo. A dor é vital.
E quanto a dor emocional?
Pesquisas demonstram que a dor da rejeição, o famoso coração partido, possui os mesmos correlatos neurais que a dor física, no cérebro. O mesmo acontece com a rejeição social, que inclusive tem acontecido muito nos dias de hoje devido à moda do cancelamento e a uma maior vulnerabilidade à exposição. Se a dor física nos serve de alerta de que algo não vai bem, a dor emocional deveria seguir o mesmo raciocínio. O que está acontecendo é que preferimos nos entorpecer de ambas. E não tiramos a mão da panela quente.
A constante busca pelo prazer
Uma olhadinha na Amazon e você encontra por lá sugestões como: A fórmula da felicidade. Como encontrar prazer e propósito no dia a dia. O mapa da felicidade. O guia do sucesso e da felicidade. Criando filhos felizes... e por aí vai.
A psicologia popular, com o aval de vários profissionais de saúde, busca pelo bem-estar. Nunca o mundo consumiu tanto bem-estar e distrações. E mesmo assim, nunca estivemos tão deprimidos e ansiosos. Vamos de dados:
Segundo o Relatório de Felicidade Mundial de 2018, que classifica 156 países segundo o grau de felicidade dos seus cidadãos, países com altos níveis de assistência social, riqueza e expectativa de vida como Estados Unidos, Canadá, Bélgica e França, declararam estar mais infelizes e com altos níveis de ansiedade, comparado com a pesquisa de 10 anos atrás.
O número de novos casos de depressão cresceu 50% entre 1990 e 2017, no mundo inteiro. Esse aumento foi maior nos países mais desenvolvidos.
A dor física também aumentou. Casos de fibromialgia, cistites, nevralgias faciais, dores musculares e dores inexplicáveis nunca foi tão alta.
Isso significa que ter acesso aos melhores analgésicos, antidepressivos, profissionais de saúde e técnicas para ser mais feliz não está sendo tão produtivo assim para a população. E por que, numa época de tantos avanços na área da medicina e tecnologia, num mundo tão próspero, com tantas possibilidades e liberdade, estamos cada vez mais infelizes e ansiosos?
Segundo a psiquiatra e professora de Stanford, Anna Lembke, em seu livro Nação Dopamina:
“Talvez o motivo de estarmos todos tão infelizes seja porque estamos dando duro para evitar sermos infelizes.”
O preço do prazer
Segundo Anna Lembke, todo prazer exige um preço, e o sofrimento que se segue após terminado o prazer dura mais tempo e é mais intenso do que o próprio prazer do qual ele se originou. Compliquei?
Pense nos nossos ancestrais. Até pouco tempo atrás (sim, é pouco tempo), éramos caçadores-coletores. Nosso sistema neurológico foi adaptado para sobreviver em um mundo de escassez. Sem prazer, não comeríamos e reproduziríamos. Sem dor, não nos protegeríamos. Essa balança prazer-dor foi essencial à nossa sobrevivência ao longo dos séculos. Nosso sistema de recompensa cerebral – o mais conhecido atualmente é a via dopaminérgica – foi “moldado” para que fossemos à luta em busca por comida, bebida e sexo.
O problema é que agora não saímos de madrugada para caçar a refeição da família. Sentados no nosso confortável sofá, passamos o dedo sobre uma centena de possíveis escolhas de alimentos prontinhos, e com um clique ele chega em sua casa. O mesmo acontece com todas as outras formas de prazer e distração. E nosso cérebro não evoluiu para esse mundo de fartura e facilidades. Como diz o Dr. Thomas Finucane, que estuda diabetes em pacientes sedentários, somos cactos em uma floresta tropical.
Mas o que isso tem a ver com a dor?
Precisamos cada vez mais, de mais recompensa para sentir prazer e suportamos cada vez menos a dor.
Ao nos entorpecermos da dor, estamos nos tornando bioquimicamente indiferentes ao mundo que nos rodeia. Tomamos antidepressivos, ansiolíticos, psicoestimulantes, opioides (e pior, damos esses remédios a nossas crianças) para que possamos nos ajustar ao mundo, mas você já parou para pensar em que mundo você está se ajustando?
Hedonia e Eudaimonia
A filosofia estoica nos presenteou com esses dois tipos de felicidade.
A felicidade hedônica é aquela ligada ao prazer de curto prazo. É aquela que busca a realização dos desejos e conquistas e que afasta o mal-estar. Neurobiologicamente falando, ela leva a uma descarga fásica de dopamina nos circuitos de recompensa do cérebro, em que altas doses de dopamina são liberadas em um curto espaço de tempo. Ela é necessária muitas vezes para que tenhamos ânimo e estímulo para conquistarmos algo, mas ela é fugaz. Além disso, descargas constantes de dopamina fásica, ou de felicidade hedônica, causam uma dessensibilização no nosso sistema de recompensa, fazendo com que tenhamos mais e mais necessidade de buscar uma quantidade cada vez maior de prazer. De tanto você comer pizza todo dia, o arroz com feijão perde o sabor.
Já a felicidade eudaimônica está relacionada ao desenvolvimento pessoal. Ela renuncia ao prazer imediato em pró de uma felicidade a longo prazo. Ela aceita um certo grau de dor, para que tenhamos resultado depois. É a gratificação após o esforço, quando nos preparamos para uma corrida, estudamos para um concurso ou ficamos acordados para cuidar dos filhos. Ela calibra a nossa balança prazer-dor. Ela depende mais da liberação tônica de dopamina no cérebro, aquela que é liberada em menor volume, mas constante.
Veja que pessoas com o sistema de recompensa descalibrado pela felicidade hedônica, quando ocorre excesso de prazer, possuem dificuldade em conquistar a felicidade eudaimônica. São pessoas que não conseguem comer uma salada, não se mantém em uma rotina de exercício físico, não conseguem permanecer em um relacionamento com uma pessoa apenas, não conseguem ter uma rotina de estudos, principalmente se o assunto é necessário e não agradável. Aí obtém o diagnóstico de algum transtorno, tomam psicoestimulantes para cumprir as tarefas do dia e ansiolíticos para conseguir dormir a noite.
A felicidade eudaimônica é considerada a felicidade mais genuína e duradoura. Mas ela precisa de certa tolerância à dor e ao desconforto. Desse modo, não seria melhor, ao invés de evitar a dor, nos adaptarmos a ela e prestarmos mais atenção ao que ela significa?
Talvez a dor seja necessária para tirarmos nossa mão da panela e sairmos de situações que nos adoecem: um relacionamento abusivo, uma família tóxica ou um trabalho que não condiz com nossos valores pessoais.
Ou talvez a dor seja necessária MESMO para que você conquiste um objetivo que te tornará uma pessoa resiliente e realizada no futuro. Mais capaz de enfrentar esses e outros obstáculos que surgirão na vida.
Por fim, mas não menos importante, talvez criar filhos tentando protegê-los da dor e permitindo o acesso constante aos prazeres imediatos esteja criando adultos infelizes e deprimidos. Talvez você esteja dificultando para seu filho que ele conquiste a felicidade eudaimônica.
